Um relatório produzido pelas organizações não governamentais (ONGs) Terra de Direitos e Justiça Global mapeou 1.171 casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos entre os anos de 2019 e 2022. Divulgado nesta quarta-feira (14), ele revela episódios envolvendo situações variadas como ameaça, agressão física, assassinato, atentado, importunação sexual, calúnia, injúria, difamação, ataques racistas
Um relatório produzido pelas organizações não governamentais (ONGs) Terra de Direitos e Justiça Global mapeou 1.171 casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos entre os anos de 2019 e 2022. Divulgado nesta quarta-feira (14), ele revela episódios envolvendo situações variadas como ameaça, agressão física, assassinato, atentado, importunação sexual, calúnia, injúria, difamação, ataques racistas e homofóbicos, violência institucional e judicial e suicídio em contexto de violações de direitos.
Intitulado Na Linha de Frente: violações contra quem defende direitos humanos, o levantamento está na sua quarta edição. As três primeiras contabilizaram, respectivamente, as ocorrências dos períodos 1997-2001, 2002-2005 e 2006-2012. O novo trabalho se concentra nos anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
“Foram quatro anos de ataques e hostilidades contra defensores de direitos humanos. E nós percebemos a importância de retomar essa linha histórica. De 2012 para cá, existem dados levantados por organizações internacionais, que historicamente têm feito esse tipo de mapeamento. Mas entendemos que é muito importante que haja uma análise feita a partir do Brasil”, explica Alane Silva, assessora jurídica da Terra de Direitos e uma das coordenadoras da pesquisa. Ela destaca que, levando em conta a subnotificação, o número de episódios ocorridos no período é provavelmente maior.
As vítimas das ocorrências mapeadas são ativistas que atuam, por exemplo, em apoio à população em situação de rua, ribeirinhos, povos indígenas, quilombolas, crianças, mulheres em situação de violência doméstica, imigrantes em condição vulnerável, alvos de preconceito de raça e de gênero, trabalhadores em situação degradante e vítimas de violência armada ou de violações praticadas por forças de segurança do Estado. Defendem o direito à terra, à moradia, ao trabalho, à saúde, à educação e ao tratamento digno.
Foram mapeadas ocorrências em todas as unidades da Federação. O estado com maior número de registros foi o Pará, onde houve 143 casos. Em seguida, aparecem Maranhão (131), Bahia (109) e Pernambuco (100). Quase metade (47%) dos casos envolve violências registradas na área da Amazônia Legal. Também chama a atenção o fato de que os episódios ocorridos nas regiões Norte e Nordeste respondem por 63,9% do total.
O relatório indica que o governo de Jair Bolsonaro foi um agente ativo do ataque aos direitos humanos, fomentando a violência por meio de discursos e medidas políticas, entre elas a flexibilização do acesso às armas. Também indica que a deterioração e o sucateamento das estruturas governamentais de garantias de direitos fizeram crescer o ambiente hostil contra grupos que são historicamente marginalizados.
Os retrocessos, segundo Alane, foram denunciados por meio da atuação de defensoras e defensores de direitos humanos. “Houve uma intensificação dos ataques, inclusive pelas falas do governo e pelas falas de diversas figuras públicas alinhadas ao governo. E esse ataque verbal legitima o ataque nos territórios. Porque se o próprio governo coloca quilombolas e indígenas como impasse para o desenvolvimento, ele dá legitimidade para que os ataques aconteçam”, diz.
Para ela, é difícil contabilizar com exatidão o total de defensoras e defensores de direitos humanos que foram alvos de violência no período não apenas pela subnotificação. Em diversos casos mapeados, houve mais de uma vítima e nem sempre todas são devidamente identificadas. Em algumas ocasiões, o alvo foi uma pessoa jurídica, como organizações e movimentos sociais que atuam em defensa dos direitos humanos.
Dos 1.171 casos mapeados, apenas 41,6% tiveram como alvo uma só pessoa. No restante, houve duas ou mais vítimas. De outro lado, foi possível identificar o nome de 65 indivíduos que apareceram em pelo menos dois episódios, ocorridos em datas diferentes, sinalizando que foram atacados mais de uma vez.
Conforme o levantamento, episódios relacionados com importunação sexual e suicídio envolvem uma vítima. Já atentados têm sido uma forma de violência praticada frequentemente contra coletividades, como por exemplo uma aldeia indígena ou um assentamento rural.
No recorte por raça, os dados mostram os grupos mais vulneráveis. Foi levantada informação sobre a classificação racial de 598 vítimas. Desse total, 346 eram indígenas e 153 negros. Juntos, eles representam 83,4% das vítimas com informação sobre a classificação racial disponível.
Ameaças e assassinatos
Foram mapeados 169 assassinatos no período, o que significa que, em média, três defensoras ou defensores de direitos humanos foram mortos a cada mês. Em pelo menos 63,3% dos casos, houve emprego de arma de fogo.
O relatório chama a atenção para o fato de que muitas vítimas são ameaçadas antes de serem assassinadas e, no entanto, as ameaças são raramente investigadas. São citados alguns exemplos emblemáticos como as mortes da missionária Dorothy Stang, em 2005 no Pará, e do advogado Manoel Mattos, em 2009 na Paraíba.
Ocorrido mais recentemente, o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips também é mencionado. Eles foram vítimas, há pouco mais de um ano, em uma emboscada no Vale do Javari, no Amazonas. “O caso também reproduz esse histórico. Bruno já havia sofrido ameaças antes de ser morto”, registra o relatório.
Os autores do levantamento apontam que há inclusive dificuldades para registrar essas ocorrências nas instituições policiais. “O crime de ameaça, previsto no Artigo 147 do Código Penal brasileiro, é considerado de menor potencial ofensivo e não ganha a atenção das autoridades policiais. Ocorre que, com grande frequência, as ameaças são recorrentes e, em muitos casos, após anos sem serem investigadas, resultam em homicídios”.
Conflitos no campo
Dos 1.171 casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos, 919 tiveram como alvo pessoas que atuam na luta pela terra, pelo território e pelo meio ambiente. Dessa forma, representam 78,5% de todas as ocorrências. Em 4,8%, as vítimas eram ativistas dos direitos LGBTQI+. Em 3,7%, a violência foi endereçada contra defensores da moradia e do direito à cidade.
Além disso, dos 169 assassinados entre 2019 e 2022, 140 eram pessoas envolvidas na luta pelo direito à terra e ao território. O dado reitera preocupações que foram expressas em levantamento recente da organização internacional Global Witness: de 227 assassinatos de defensores de terras e do meio ambiente em todo o mundo no ano de 2020, 20 foram no Brasil. Os números do país só são superados pela Colômbia, pelo México e as Filipinas.
O relatório aponta que direitos consagrados na Constituição e em tratados internacionais foram violados por meio da alteração de normas e do sucateamento de instituições. “A violência começa nos próprios mecanismos estatais de destruição das políticas públicas. Isso se dá com a mudança da legislação ambiental e com a paralisação da titulação de territórios quilombolas, da demarcação de terras indígenas e da reforma agrária. São processos que foram legitimando a violência”, avalia Alane. Ela cita ainda o enfraquecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como parte dos fatores que fizeram aumentar a tensão no campo.
O estudo também buscou identificar características dos agentes violadores dos direitos. Pelo menos 32,7% das ocorrências envolveram sujeitos privados como empresas, madeireiros, fazendeiros e milícias. Outras 22,9% tiveram a participação de agentes públicos como polícias, políticos, representantes de órgãos e administração pública e atores do sistema de Justiça. Em 44,4%, não há informação.
Proteção
Alane avalia que o levantamento revela a urgência de se ampliar políticas capazes de efetivar os direitos à terra, ao território, à moradia, à saúde e à educação. Além disso reitera a necessidade de revisão e fortalecimento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas. Essa tem sido uma cobrança do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), formado por 45 entidades e movimentos sociais de todo o Brasil, incluindo o Terra de Direitos e a Justiça Global. Já existe uma sinalização positiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em torno das demandas apresentadas, mas a demora tem incomodado as organizações.
A inclusão no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas pode ocorrer por pedido do próprio interessado ou por solicitação de entidades da sociedade civil, do Ministério Público ou de outros órgãos públicos que tenham conhecimento da ameaça. Entre diversos mecanismos previstos, está o acompanhamento das investigações e a oferta de assistência jurídica e psicológica. Em casos excepcionais, é prevista a articulação da proteção policial e a retirada provisória da pessoa do seu local de atuação por até 90 dias. Segundo o site do governo federal, atualmente há 506 pessoas inscritas no programa.
A primeira versão de um Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos foi lançada em 2004, mas de lá pra cá ele sofreu diversas modificações. A CBDDH aponta que, durante o governo de Jair Bolsonaro, ele foi esvaziado de recursos e perdeu força institucional. As principais reivindicações do comitê são a paridade entre sociedade civil e governo no conselho deliberativo do programa, a aprovação de uma lei para institucionalizá-lo, a criação de um plano nacional de proteção e o reforço no orçamento.
Fortalecer o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas é inclusive uma das determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, estabelecidas na sentença que condenou o Brasil pela violação dos direitos à verdade e à proteção da família de Gabriel Sales Pimenta, jovem advogado assassinado em 1982, aos 27 anos. Atuando na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, ele foi alvejado por tiros quando saía de um bar na cidade de Marabá (PA). Na sentença, publicada no ano passado, a Corte Interamericana apontou falhas graves do Estado brasileiro, que não se mobilizou adequadamente para esclarecer as circunstâncias do crime e punir os envolvidos.
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